1-O homem que comia brevidades

O Homem Que Comia Brevidades... e o seu último carnaval.

Fragmento de Carta I
“Depois que nos despedimos desta última vez, pensei em jamais procurá-la novamente... Ando sem perceber como estão ficando ultrapassados meus gestos, meu cabelo! minhas roupas e minha maneira de gostar de você. A avenida, naquele dia, me fez pensar sobre o sentido da vida, mas, felizmente, meu ônibus veio; dei sinal e corri para pegá-lo antes da arrancada. O aperto, o odor, a lentidão, misturados ao calor, sempre me dão a sensação de que, talvez, seria melhor nem ter nascido; mas pensava no seu beijo – samba em meu cerebelo e se arrebenta desfazendo-se no meu sistema nervoso. Através do vidro o que via era vazio; bateu a sensação de levitar, mas a droga de um espirro que me respingou a cara despencou-me novamente na sensação das ondulações do asfalto. Tinha fome. Tinha sede. Tinha uma velha que comeu um milho e melou o ferro justo onde eu peguei... Desci. Entre a moldura de graxa da porta rolante, metálica, enferrujada da cantina que sustenta meu apartamento entre aqueles outros vinte e nove, vi – mais por conhecer a vitrina de cor que por nitidez – as brevidades que, há muito, me tiram a fome... Enquanto esperava sem nenhum compromisso, corcunda, sentado na cadeira giratória...”.

Uma Tarde Qualquer
Quarenta e dois graus: coço, tusso, engulo as brevidades mais-ou-menos secas e calmamente os segundos vão passando. O povaréu na rua me remete ao inferno de Dante, os segundos passam... Graças a Deus eles passam. As brevidades incham na minha goela, giro com a cadeira em direção ao balcão e dou o primeiro gole na Coca enquanto olho com cumplicidade para a moça que lava a louça, sua maneira me toma, existência que desemboca numa pia de gordura... Magra, daquelas magrezas poéticas. Adoro essas magrezas. São lindas. Assim quando a pelve se destaca desenhando asas ao redor da vulva. Como uma borboleta... Debruçada no trabalho daquele jeito é como se as duas, a pia e ela, fossem extensões uma da outra. Há pessoas que a gente vê por longos períodos da vida sem saber nem de onde elas vêm e nem pra onde que vão, ela é uma delas. Um dia perguntarei seu nome. Dou um último gole na Coca já sem gás e me perco diante da imensidão do resto da tarde... Penso em dormir, mas o calor é insuportável; aí, prefiro ver televisão. Entretenimento é bom... Subo o primeiro lance de escadas e você já me volta à mente beijando aquele gordo; puta-que-pariu! Estremeço só de pensar em você subindo estas escadas comigo. Só nós dois. Brincaríamos brincadeirinhas bobas que só interessam aos apaixonados; que nos que estão passando por perto geram instintos assassinos; talvez um tropeçaria e o outro riria, baixo, bem baixinho, claro, para ninguém aparecer; subiríamos esbarrando um no outro, beberíamos cerveja no chão da sala... Volto à tarde quente ao ver um envelope em baixo da porta. Penso ser uma carta; mas não, só propaganda política. Sento, ligo a tevê, vou cedendo o corpo às voltas do sofá. Recosto a cabeça; suo, deito, tusso de novo, coço...

...Pela Manhã.
Sempre tive medo que as portas automáticas não se abram para mim, sempre comprei bombons Garoto e embrulhei em papel colorido para presente de aniversário – até perceber o quanto era ridículo. Mas até hoje, quando chego nas festas, tenho a sensação de ter na mão uma maldita caixa de bombons Garoto. Não sei, definitivamente, fazer cara de chegar em festa. Hoje faz sol novamente; a cidade fede, novamente, e minhas costas doem do sofá de courino. No espelho vejo a marca de um botão, vermelha, em minha bochecha. Merda! Ensopado. Tenho medo de você me ver agora, medo bobo, medo de que você não queira mais ficar comigo. Ficar comigo! Idiota. Porque tenho sempre que ter pensamentos idiotas? Porque a essa hora portas automáticas, caixas de bombons e ...? Idiota!!! Tomar banho, tomar banho, tomar banho... brevidades, ..., ..., fome. Brevidades. Ninguém me cheira mesmo.

- Duas, por favor. E uma Coca.

Cadê a moça da pia? Sei que ainda tenho a marca de um botão na bochecha; droga! Porque não tomei banho antes?! Droga! Não quero nada com nada hoje; que nada me encha o saco. Ai minhas costas... Cadê a moça?! Cadê minha Coca... Cara idiota depois daquele beijo. Idiota! Porque não puxei e beijei direito, sabia que pra ela era só brincadeira... Idiooooota!!! Tinha que ficar com aquela cara idiota de alegria; de quem abre um dicionário na página certa, com a mesma cara dos bombons Garoto... Droga!

- Tem Aspirina?

Voltar para casa; ai se eu pudesse desligar a cabeça... Ligo a tevê. Tomar cerveja no chão da sala... Idiota. Legal! Mickey Mouse. Televisão é legal. Amanhã recomeça o trabalho. Acho que se Mickey Mouse fosse eterno eu morreria por inanição.

Uma Pequena Descrição
Valter Máximo. Chamava-se Valter. Valter. Valter com um horroroso v e um, apenas um t. Não que desse a vida por dáblios ou por tês duplos; mas pensava desta maneira por ter ouvido seu pai, a vida inteira, culpar sua mãe por registrá-lo assim. Trabalhava numa fábrica que fazia guardanapos. Neles silkava balões, Patos Donald’s alegres, Barbapapas; às vezes só bolinhas, listras, etc... Seu companheiro de máquina chamava-se Jocicler. A cara de Jocicler era a prova, prova incontestável, de que há coisas imutáveis, completamente imutáveis no universo; ainda que vivas. Valter parafraseava Salomão: “Nada de novo há acima do busto de Jocicler”.

Valter era do tipo que ninguém vê passar. Pelas calçadas, andando, se ausentava do mundo; e para se ausentar do mundo analisava sempre, precisamente e responsavelmente, quase automaticamente, os seus próximos trinta metros de caminho; temia uma merda, um cocô. Uma possível merda, que pisaria, era a única ligação com o real que Valter Máximo tinha enquanto andava. Pensava em um dia começar andar e nunca mais parar. Andar, andar, andar, andar... Sonhava com ruas sem cocôs. Certa vez disse: “... mas sei que não há lugar no mundo para aqueles que querem começar a andar para nunca mais parar e também sei que jamais haverá ruas sem cocôs, eu sei disso”. Sempre achava que sabia das coisas.

Outra Vez, Num Só Fôlego, Disse:
“Queria mesmo é que a vida fosse uma enorme brevidade. Estática. Média. Fofa. Opaca. Uniforme. É, a grande brevidade da vida! A vida, a grande brevidade. Além do mais é barato e não é muito doce... Hum! Ela uma brevidade e eu também; seria verdadeiramente feliz sendo uma brevidade. Ser brevidade, ou ter brevidade como essência? ... Não precisaríamos de nada. Não deveríamos nada... Seriamos apenas brevidades. Ai... meu reino por uma brevidade ser. Manuel Bandeira é legal. Talvez Manuel Bandeira, Mickey Mouse e brevidades sejam as coisas que mais amo na vida”.

Sobre os Guardanapos
Odiava quando chegava em alguma festa de sobrinho e via os guardanapos embolados e sujos pelo chão. Tinha vontade de chutar o sobrinho.

Um Aparte Para Jocicler
Na fábrica:

- om dia.

- Bom dia Jocicler.

- ...

- ...

- Como foi de carnaval?

- Bom.

Jocicler era um chato; não tinha culpa nenhuma, era aquele chato por natureza. Jocicler era um dos possuidores da chatice fundamental... Quando tomava sorvete era chato, quando dava om dia era chato, quando pedia por favor era chato. Estorvo. Era feliz. E demonstrava isso sempre. Era coisa que fazia questão. Porque todo chato é feliz? Porque eles têm sempre que demonstrar isso? Pensava Valter.

Fragmento de Carta II
“... Hoje achei que estava ficando louco, nunca isto havia me doído tanto na vida. Era aniversário da mulher de Jocicler (meu amigo da fábrica) e a pior coisa que eu poderia ter feito, eu fiz: encontrá-la. Poderia ter sido ótimo... Nos despedimos e saí pensando numa bala me atravessando a cabeça, fui em busca de um Shopping para comprar uma caixa de bombons... não queria chegar de mãos vazias. Atravessei a rua e minha cabeça rodava, achava que ia explodir. Não sentia fome; me sentia como uma lâmpada, como um pneu prestes a estourar. Subi as escadas que davam para a portaria do Shopping. Alguns namorados namoravam e eu sentia asco. Fui andando devagarzinho, bem devagar. O temor da porta automática foi me tomando, eu tremia. Poucos metros e nada. Pouquíssimos metros e nada. Não queria olhar, não conseguiria retroceder: suava. As pernas bambearam. Sentia que na avenida os carros paravam para me observar; os aviões que passavam, paravam e começavam a circular ao redor de minha cabeça, me assistiam. A porta me impunha sua grandeza como jamais havia me imposto antes. Diminuí o passo. Três metros, dois e meio. Dois metros, já estava quase sem força. Dois metros e ela continuava lá; estática, fria, forte... Tudo que eu queria era conseguir parar. Não consegui. Só consegui quando meu nariz tocou levemente a porta. Parei. Queria chorar, não conseguia. Queria chutar a porta, não tinha forças. Queria voltar, sabia que era necessário. Fiquei ali, queria que o mundo acabasse naquele momento... Santo segurança, quando ouvi sua voz pensei ser a voz de um anjo. Pensei ter trasladado. Morrido.

- Meu senhor, esta entrada está em reforma. O senhor precisa passar pelo outro lado.

Não consegui sair da mesma posição. Achei que ficaria ali pra sempre.

Na verdade não sei como saí, penso que o segurança me tirou de lá. Andava, a caixa de bombos muito bem embrulhada debaixo do braço. Queria jamais encontrá-la de novo nessa vida. O ônibus até que estava vazio. Minha cabeça rodava ainda. Me sentia tão estranho que tive medo de querer jogar a caixa de bombons na cabeça da mulher do Jocicler ao chegar... Acho que eu estou ficando doido. Desci. O ponto era em frente a casa de Jocicler. Um cheiro horrível me veio. Fui procurar um pau para limpar meus sapatos antes de entrar...

A mulher do Jocicler e o Jocicler sentiram sua falta. Acho melhor a gente dar um tempo sem se ver”.

Uma Noite
Na festa comentavam que ele estava estranho. Escrevera algo e depois não conversou com ninguém. Não bebeu, não comeu... nem cantar Parabéns cantou. Ficou sentado, imóvel, meio encubucado. Achavam que ele estava passando mal. Perguntavam e ele não respondia. Ninguém ligou, ele era meio estranho mesmo. Uns achavam que estava bêbado, mas a maioria nem achava nada. Um conhecido resolveu levá-lo para casa, era caminho. Ele não respondeu que sim, nem respondeu que não; levantou-se e foi. Desceu do carro mudo, a porta da cantina estava fechada. Andava lento. Rodou por alguns instantes no mesmo lugar. Viu um papelzinho de brevidades perto da porta. Já era tarde. Começou a rodar ao redor do papel. Foi se abaixando lentamente, lentamente, lentamente... até se agachar em cima do papel. Abraçou as duas pernas. Abaixou a cabeça. Uma lágrima escorreu. Viu-se de cima, como se já não precisasse mais das vistas para enxergar. Já não sentia mais cada parte do seu corpo separadamente. Já não sentia mais deformidades ou disformidades nele. A última coisa que sentiu foi uma vontade imensa de ser mastigado... havia mudado de cor.

Pela manhã, após muita insistência do dono da cantina para que saísse dali, foi levado por uma ambulância. Ninguém soube pra onde. Permaneceu imóvel. A moça da pia sentiu pena. Após quatro horas de atraso no serviço, sentiram sua falta... Pensaram ser ressaca.

8 comentários:

. fina flor . disse...

Li fragmento de carta I. Muito bom.

se me permite um pitaco, rs*.... por que não posta um a um e deixa disponível em sequência de posts?

fazendo assim, o próprio arquivo do blog os deixarão em links, ao passo que cada texto estará separado um do outro.

não que exista uma regra para blogs, mas para quem os frequenta é mais gosto de ler ;o)

beijos, menino bonito

MM.

Henrique disse...

valeu moça bonita... mas, só leu esse pedacinho?!

carol machado disse...

que delíca de textos, mário!
a moça da pia me lembra o cheiro do ralo, o filme, vc viu?
achei sensacional a parte de subir as escadas, tomar cerveja no chão, bonito e deu vontade. sentimento convidativo. quase um convite irrecusável se ela soubesse. nada idiota.
várias risadas lendo sobre a porta giratória e o nariz colado. típico humor seu. adoro!!
definitivamente, lança um livro, por favor!!!! queria ler estes textos com calma ao invés da tela do computador, sabe!?
quase estava aqui já analisando o moço das brevidades, mas não vou fazer isso não..
beijoss


s. jocicler é fanho?

Henrique disse...

puxa... e isso eu escrevi em 99, 2000. e hoje em dia lourenço é meu ídolo.

gostei do convidativo!

pode analisar...

o livro é isso aqui.

jocicler não é fanho, só é chato mesmo. desanimado. por isso o 'b' não sai.

beijo.

. fina flor . disse...

o breviedades eu reconheci, de quando me mandou alguns... gosto muito...

beijos, dear

MM.

>>> e não, não é Roberto, reconvexo é do Caetano ;o)

Henrique disse...

pois é, eu lembro.

e a música, confundi com essa aqui:




O côncavo e o convexo
Roberto Carlos
Composição: Roberto Carlos/ Erasmo Carlos

Nosso amor é demais e quando amor se faz
Tudo é bem mais bonito
Nele a gente se dá muito mais do que está
E o que não está escrito
Quando a gente se abraça, tanta coisa se passa
Que não dá pra falar
Nesse encontro perfeito, entre o seu e o meu peito
Nossa roupa não dá

Nosso amor é assim, pra você e pra mim
Como manda a receita
Nossas curvas se acham, nossas formas se encaixam
Na medida perfeita

Esse amor é pra nós a loucura que traz
Esse sonho de paz e é bonito demais
Quando a gente se beija, se ama e se esquece
Da vida lá fora
Cada parte de nós tem a forma ideal
Quando juntas estão, coincidência total
Do côncavo e convexo
Assim é nosso amor, no sexo

Esse amor é pra nós a loucura que traz
Esse sonho de paz e é bonito demais
Quando a gente se beija, se ama e se esquece
Da vida lá fora

Cada parte de nós tem a forma ideal
Quando juntas estão, coincidência total
Do côncavo e convexo
Assim é nosso amor, no sexo



beijo.

Janaina de Paula disse...

Ouço música no lugar das letras...tem som, tem ritmo, tem humor e (essa) bela manhã de domingo.
bjos,
Jana

Henrique disse...

é que queria ser paul anka.