começava um solo memorável

Começava ali um solo memorável, aquele que me consagraria realmente pelo resto da vida, e que por sorte estava sendo gravado. Por sorte também, Miles observava atento e sorridente na segunda fileira, o que me rendeu as melhores críticas de sua parte. Teria sido capaz de solar aquela noite inteira, mas me deixei levar apenas uns 54, 55 minutos. Aos 15 a platéia já se punha em pé, aos 30 aplaudiam freneticamente, aos 45 tornou-se incontrolável, cadeiras voavam pelo grande teatro e havia pelo menos umas quatro pessoas em cima do meu piano. Mas, Paris é realmente uma festa que não acabou por aí; fomos então, após os autógrafos, ao quarto de hotel que Hemingway, um grande e promissor talento da época alugara, e a quem Miles insistiu que eu conhecesse.

Hemingway me recebeu com um leve soco de esquerda no queixo e disse: Rapaz, estava mesmo louco pra te conhecer. Sinceramente, depois de algum ácido que pingamos no café, achei que aquela reuniãozinha não daria em nada; e Hemingway era um chato. Tomei o primeiro tílburi e rumei para Champs-Elysées. Num café qualquer pedi uma dose dupla de vodca, num café qualquer eu era um quase desconhecido e esta sensação me agradava. Foi quando uma linda moça, com um forte sotaque, perguntou-me se aceitaria sua companhia; sua pele branca e seus olhos verdes, sua echarpe pendendo sobre o longo corpo. Conversamos por horas sobre assuntos que iam dos novíssimos seriados de tevê às influências de Stravinsky na música de Parker.

O dia amanhecia e o sol já nos aquecia um pouco pelas ruas enquanto derretia a neve. Bereszka lambia meu rosto de quando em quando por debaixo do chapéu e me dizia coisas de empalidecer Marquês de Sade. Fomos para seu pequeno mas aconchegante apartamento na periferia, não sem antes levarmos um pouco de haxixe que o taxista, um negro com traços de máscara africana e um doce sorriso, gentilmente nos ofereceu. Tomamos ainda uma última vodca antes que ela começasse a se despir.

Passamos a manhã dormindo e a tarde juntos por lugares onde apenas, e raramente, um ou outro me reconhecia. Afinal, minha música é pra poucos. À noite voltei sonolento e cambaleante para minha cobertura, com promessas de no reencontrarmos em breve. Dormi um sono pesado onde sonhei com anjas que me conduziam ao trono de Bach no paraíso.

Acordei com uma leve ressaca e uma pequenina legião de fãs cantarolando com cítaras pela calçada: salve Mario, salve Mario... cantavam como uma rebuscada paródia a música dos HareKrishna. Porra; não, não, de novo não! Mas, fãs são fãs, e merecem respeito, fui lá e sacudi minha cabeleira ainda em desalinho pelo parapeito da sacada e voltei para o café. 11 da manhã e mais um dia inteiro pela frente. Dispensei, então, todos os empregados e subi para o terraço, tirei aquela tarde de folga. Paris é decididamente uma festa.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo!

Henrique disse...

ô anônimo... valeu! gosto muito desse também....