III - Elias

Meia noite iniciaria o dia do seu aniversário, um dia após Iemanjá; desliguei o telefone cinco pra meia noite e acendi o cigarro, o relógio acaba de dar meia noite e vinte. Joanna linda e manca.

Trouxe pra casa um ursinho pra minha filha, Eliana, ela sorriu, ficou feliz e reclamou do cheiro de cigarro... lavei, só deu pra brincar um dia e meio depois.

O cigarro é como um canudo que coloca alma na gente. Eu, Elias.
..........................................................03 de fevereiro de 2004


E aí?



De volta ao computador... tudo bem, como todas as noites. A luz do monitor.

A cadeira giratória. Ababelar histórias reais para virarem imagens irreais... meu trabalho. Estórias. Estórias que virarão moda para camelô vender, etc... Estórias para virarem assunto nas mesas universitárias, na zona, nos programas da tarde, distração, imagens na tela, capas de revistas. A luz do monitor e minha mente, dos meus dedos estórias inteiras prontas, fácil? Os óculos. Tudo junto ao cigarro e ao café... que esvaziou, levanto e vou à máquina preparar mais café.

Minha filha às vezes reclama também do cheiro da vodca.

Sabe ela que vodca é álcool, álcool é espírito, espírito movimenta os dedos no teclado, dedos no teclado compram ursinhos de pelúcia? Coisa que sua mãe nunca percebeu e não perdoou; hoje mora com o advogado.

O advogado... herdeiro de um grande juiz, barba bem feita e bochecha grande. Durante a semana: Hugo Boss, final de semana: Nike e bermuda bege cheia de bolsos, camisa branquinha; isso é muito irritante! Só não é mais irritante do que me dar a mão bem sadiamente, olimpicamente: olá, como vai o grande escritor. Minha mão dói da LER. Eu com cheiro de café e ele de goiaba. E eu de ressaca tresnoitada de café e vodca, parindo capítulos, sem paciência e estômago pra roupa passada.

Grande escritor é a puta que o pariu!!!

...ela, Eliana, Elias com Joanna, ficou pra morar comigo por vontade própria, não aceitou o gordo do Antônio, que nos churrascos que eu o encontro é chamado de Toninho... churrascos chatos que minha filha pede que eu vá. Fala-se de política, piadas, mulheres, fica-se bêbado e alguém puxa do violão e acaba de cagar tudo.

Ai Elias...



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Uma e meia e no capítulo de hoje Mariângela ainda precisa aceitar ir à Búzios com Marco, que por coincidência também é filho de um juiz. Minha menininha dorme e minha cabeça cheia não aceita idéias, saio, muito raro fazer. É quando a cabeça não dá mais conta; saio pra tomar alguma coisa a três quarteirões daqui, aí deixo é a cabeça esvaziar.

Volto; vejo minha janela acesa no prédio, minha filha é o que tenho... e se não escrever mais? Vejo a janela como se ao contrário fosse meu apartamento é quem vagasse e me visse; eu parado e todo o resto indo... ou meu fantasma à janela.

E será porque minha cabeça não falhou, que tem falhado tanto, sempre, justo hoje... porque lembrar de um aniversário já que tenho uma memória imprestável a este tipo de coisas? Eu digo: o dia de Iemanjá! Uma data, um dia, após o dia após Iemanjá, e é o que me lembrará pra sempre. Ter uma entidade a cada ano me lembrando de um aniversário... Safadezas da vida. Iemanjá; de quem a epifania são as águas. Rabo de peixe... Se não mergulha em minha vodca... Búzios.

Mariângela aceita, os dedos no teclado... e me vêm aquelas vontades estranhas de novo, vontades que venho tendo e que não podem, que vêm tomando minha cabeça, a vontade agora é de colocar Mariângela no aparador segurando as pernas pra cima enquanto o dono da venda chega, escrever um próximo capítulo de uma trepada no mato em beira de estrada, um close do boquete guiando o carro nas ruas do centro da cidade... câmera em foco na boca de Marta Albuquerque... trepadas como hienas, um documentário só com hienas trepando... João Diniz mandando a empregada de coxas gordas foder com ele no chão da cozinha igual um porquinho... ai, ai, ai...

Elias, Elias!



Mariângela caminha na praia

O grande escritor de puta que o pariu a cada capitulo recria, recria cada capítulo a lápis em sua cama antes do comprimido fazer efeito. De maneira que lhe dá prazer... mas isso não tem muito efeito.



É dia e Eliana precisa ir à escola, eu volto, e é quando volto que paro pela tarde na orla da praia... muitas flores brancas, vermelhas e velas na orla, velas...

- Uéslei... e aí?

Uéslei senta... eu sento próximo a sua banca de revistas, é um bom cara, dos meus amigos de faculdade que ficaram sem casar. Sente orgulho das minhas estórias nas capas das revistas que vende. Abre o jogo comigo e eu com ele. É um bom amigo. Não tem muito comigo, nem eu com ele... Mas a gente se abre e é bom, a gente desabafa e é bom. Me disse uma vez que cresceu com dificuldade para se relacionar com as pessoas; e desde adolescente com muita dificuldade com o nome que recebeu, vai se falar da vida de um sujeito... acha que se retraiu por causa do nome e entrou na letras pela dificuldade com as pessoas. Sua banca ele batizou Banca dos Amigos.

O grande escritor Elias vê uma criança de biquíni nos ombros de um homem, pensa se aquilo da prazer ao... cospe no chão e sente uma forte dor de estômago. Volta para o Uéslei e convida para uma vodca.



- Dia do aniversário dela Uéslei.
- Ela quem?
- É, é foda... fiquei vendo as rosas na orla... (acende o cigarro).
- Ela quem?
- Rosas vermelhas, dei a ela uma de plástico certa vez, será que ainda tem...
- Ela quem porra...



..................................21 de fevereiro de 2004

Outra semana, outra noite, sento para o computador e penso na menina da praia, imagens grotescas. Penso em Eliana e sei que alguma coisa má acontece, vem acontecendo comigo. Penso na vida, e ela em mim só cabe passado. Nada de novo embaixo do meu chapéu. Tenho uma estória escrita para Eliana, abro o arquivo: Eliana, a Menina Bacana. Leio, releio o título. O título já me faz o estômago doer, e o resto? De novo e preciso de vodca. Releio. Como consegui escrever e gostar disso um dia?! Apago o título. Desisto de ler o resto.

Não suporto mais acompanhar minha novela.

Fala um pouco de Joanna, Elias...



Joanna, Joanna... Joanna era minha menina manca. Nossa história quando começou: faz alguns anos cruzou as pernas à minha frente, menor sob a maior, lembro bem... depois pernas entreabertas. Levantou-se e andou como se pedalasse uma bicicleta de vento. Minissaia de seda. Joanna mancava lento. Atravessava a avenida como se ouvisse uma valsa. Não saiu mais da minha cabeça. Advogado, Toninho, bochechudo filho da puta!

Joanna ainda hoje anda com a graça de um balé.

De minissaia não escondia as coxas coxas, claudicantes, bem torneadas, brancas, de tamanhos diferentes.

Joanna.

Nossa primeira vez no banheiro do salão de festas do seu prédio, lembro bem; e eu pedia e ela repetia, e eu pedia e ela repetia, e eu pedia e ela repetia o movimento lento de manivela. Lembranças.

Joanna, um simples andar de mãos dadas e eu queria um lugar à sós. Um pouco do movimento dos seus passos e eu ficava perdido.

Creio que para Eliana também... os melhores momentos de nossa filha quando bebê eram passear no colo de Joanna, era uma mini-roda-gigante. Dormia às vezes, às vezes só contemplava...

Até a história fica manca, Elias!?



Não quero falar de Joanna.

Lógico que naquela versão não daria pra continuar; e da caixa o palhaço saiu com os braços esticados para os lados, a boca vermelhinha, assustando Eliana. A garrafa espatifou e espalhou cacos entre nós. E sobre o que conversamos é melhor esquecer. A gente vai falando mesmo só pra ocupar espaços. Vai falando, falando e depois derruba o copo ou a garrafa. É mais ou menos a mesma coisa, a idéia morre do mesmo jeito que vem o garçom e limpa a mesa. Depois de uma volta completa o que resta é começar de novo. Dez anos a mil, novecentas e tantas voltas. O grande atleta de longas distâncias numa manhã fria e umbrosa de quinta percebeu que sempre voltava para o mesmo lugar, o pior: cada vez mais rápido! Parou. Mas não se passarão meses para voltar aos treinos.



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Voltando: Meu trabalho vem fazendo um sucesso fora do comum. Eu começo a ver graça em coisas estranhas, como acompanhar o lodo crescendo na pia do banheiro, como encher e equilibrar as guimbas no cinzeiro até derramar. E Eliana não pode crescer assim.

Cuspi pra cima e fiquei esperando que ventasse mais forte... não ventou. Eu sou um bom homem, eu sou um bom pai, mas. Ligo e peço a Joanna manca: fica uns dias com a Eliana.


.........................................04 de abril de 2004

Minha novela sobe cada vez mais na audiência, eu a cada noite escrevendo, escrevendo. Abrindo antigas pastas, textos, antigas novelas... colagens da minha vida que na verdade anda em círculo. Odeio o que fiz e o que faço e faço de tudo para que a novela termine, caia de audiência e seja preciso terminá-la. Meses, meses... Mas ao contrário é um grande sucesso, algo jamais visto. Saio com Eliana aos domingos; é só quando saio de casa durante o dia sem compromiso, e posso ver Mariângela nas capas das revistas, sem compromisso. Uéslei continua lá. Sei que não estou bem. Peço um café na sorveteria com Eliana. O cigarro.

Hoje sem cigarros eu não daria conta.

Eliana e o sorvete me lembram o filho que abortei e me tem voltado pelas manhãs em imagens estranhas. Cabeça de vagina sorrindo, às vezes na barriga de uma lagartixa, outras em espiral num bueiro, se masturbando na beira da cama. Verossilhanças. Sorvete.

- Pai, compra outro?
- Claro meu amor.

A palavra amor me dói o estômago.

- Outro e outro café, por favor.

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A vida...

E a estória segue. Coloco Mariângela cega por complicações médicas, meio por vingança; o ibope quase ignora o segundo colocado... Mariângela e Marco se separam... continuo campeão de audiência. E eu?

Faço coisas, escrevo coisas automáticas estereotipadas e sem graça, vou escrevendo por escrever. Não penso, sento e escrevo. Há vezes em que me pego pensando em outras coisas enquanto o faço. Torno personagens viciadas e só falta liberarem as drogas. Insinuo sexo grosseiro. Fico bêbado e escrevo qualquer coisa e tudo vai sem cortes. Odeio, odeio o que escrevo e nem releio, vai sem correção e o sucesso é absoluto. Viro notícia fechado no escritório que agora comporta também meu colchão.

Só você Elias...



...qualquer coisa que crio ou recrio parece dar certo, ao contrário me fecho no escritório sem apetite para o sólido. Vendo direitos para América do sul e Europa. Emagreço e não dou mais entrevistas. Minha vida sai numa revista de celebridades, autorizo, autorizaria qualquer coisa. Fotos antigas. O dinheiro vem como os cigarros que queimo. E o lodo na pia. E a vontade de parar. Vida. Vida.

“De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”

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Na tevê prolongam-se os capítulos... recomeço outra estória à parte: “A Boceta de Pandora”, e nela me fio.

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A Boceta de Pandora. Laudas detalhadas e bem escritas se ajuntam aos poucos ao lado e ao redor do colchão. Personagens, momentos. O melhor de mim. Reduzo cada lauda ao seu melhor para depois recomeçar. O melhor de mim. Escreve Elias.

As mais lindas cenas.

Entra meados de junho, Joanna liga que Eliana está com saudade do papai e a põe ao telefone:

- Papai, escrevi um poema na escola, é pra você, quer ver?

Embaixo da lua vejo papai
Embaixo da lua vejo papai

Eu gosto do sol
Eu gosto de mel
Papai não gosta do céu

Cedo vejo papai dormir
Cedo de manhã
Vejo papai andando na lua
Desce pra me buscar amanhã
E minha vida é sua

Embaixo da lua vejo papai



Não choro, apesar de doer um sentimento no meu peito ao qual eu daria o nome de sentimento choro.

- Filha, papai não está bem com você, né? Papai, sabe? Filha, papai te ama, filha. Filha, sabe, papai não está bem, né?

Eta Elias.



- Filha, sabe papai? O papai? Papai não sabe. Filha.

Nunca se sabe Elias...



Sentimento choro, corro para Boceta de Pandora e tropeço forte. Ai, a dor é muito grande, absurda! Manco, manco até o computador...

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Dois dias e esqueço da novela

Tranco as portas e desligo os telefones, corto o fio da campainha, deixo recado na portaria que viajei... dois dias seguidos. Boceta de pandora, boceta de pandora... outra estória. Fim dos dois dias... abro a porta, ar. Volto e tranco quando vejo os jornais na porta.

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Continuo. Só sei que continuo. Boceta de pandora, boceta de pandora, boceta de pandora. Dias. No meio tempo vou abrindo meus arquivos antigos... apagando... apago letra por letra, apaga, apaga, apago todos. Quebro cópias, disquetes, CDS, queimo originais no chão do banheiro. Ai, ai, ai... Revistas, recortes, acende cigarros com reportagens dos anos setenta pelo imenso prazer que dá... Digito, refaço. Pequenas fogueiras durante as noites com minha coleção do Cortázar... e nada mais escrito por mim... bilhetes, diários ou agendas. Aos poucos Boceta de Pandora.

Fim. Leio. Releio... Não. Continuo.

“Mas e se esta lua, se esta lua fosse minha...”. Elias, eu, e meu apartamento. Nos jornais um empresário japonês é seqüestrado... Numa discussão um gago pensa duas vezes antes de mentir... E no grande prêmio o super favorito capota, e gira, como se estivesse brincando na areia. Vai... Escrevo, escrevo. Escreve, escreve. Doze dias e abro a porta para o supermercado que encomendei, manco. O lodo no banheiro. Sobre a mesa uma pilha de impressos, luz acesa dia e noite. Dias, dias. Poxa, e a novela, Elias? Vinte dias. Quase em claro. Alguma sonolência.

Sobe a cotação do dólar, e um primo distante não passa no exame de direção. Escrevo, escrevo, apago, refaço. Noite, dia. Fumo. Fumaça. Líquido. A boceta de Pandora. Vinte e tantos dias. Ninguém sabe. Não importa. Para! Parei. Foi por amor.

Outra estória.

Dias e A Boceta de Pandora. Uma manca, um escritor e uma criança. Outra estória. Nada mais. Seiscentas e trinta laudas apenas, talvez boas, perfeitas ou imperfeitas... e os dias que se passaram. Abro a janela...

E deito.

Lógico que naquela versão não daria pra continuar; e da caixa o palhaço saiu com os braços esticados para os lados, a boca vermelhinha, assustando Eliana. A garrafa espatifou e espalhou cacos dentro de Elias. Qualquer história é perfeita, Elias.



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.....................................12 de julho de 2004


Acordo, muito tempo, e sinto a perna melhor. Pela janela é manhã... os jornais. Ando pela orla, compro um cachorro-quente e vou a uma banca de revistas comprar cigarros. Outra novela nas capas. Não sei o que foi.

O sol bate nos meus óculos de sol, sigo caminhando para as rochas do outro lado, lado que não me lembro de já ter ido. Antes havia me barbeado, tomado banho e trocado de roupa. Vejo as pessoas na areia da praia, estão todas lá. Sento na pedra da Gávea, que um grande escritor, este sim grande, disse ser algo semelhante à burrice. Acendo o cigarro e penso: E agora?

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