2-Às seis da tarde

Às seis da tardeou moto-contínuo



Acordo


O relógio despertou às seis da tarde, e eu sem saber bem o que fazer. Sabia que acordar era preciso; o difícil, agora, é saber por quê. Fome misturada à ansiedade. Corpo pesado. Tudo no lugar: copos, cortinas, livros, retratos, pó... Talvez ir à banca, ver TV... Ligar para alguém. Não. Meio cansado de mim, mas querendo ainda algo. Vitamina de banana. Seis da tarde é das horas a mais sem sentido do dia, creio que não haja pessoa que faça algo útil às seis da tarde. Ligo o radinho: “Dorme o sol à flor do Chico, meio dia. Tudo esbarra embriagado de seu lume. Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia. Só vigia um ponto negro: meu ciúme”. Tempo fresco, tempo parado; um ou outro barulho de ambulância, de vez em quando. Um ou outro avião que passa de vez em quando...


Ela

A mulher da janela em frente sai do banho, começa a abaixar a toalha, mas vai pro quarto; mais uma noitada. Geralmente volta às três ou quatro da manhã. Quando estou em casa costumo vê-la chegar. Gostosa. Chega mole. De sapatos na mão... A primeira coisa que faz é tirar o vestido; deve ir a boates chiques, nunca a vi sair de calça à noite. Não entendo o porquê de tirar o vestido se o que aperta é a lingerie! Mantém calcinha e sutiã até entrar para o quarto, que é quando não a vejo mais. Toma Coca-Cola, ou alguma outra coisa que tira da geladeira, come algo e vai dormir. Nunca, que eu me lembre, abriu as cortinas do quarto.


E Eu, Que Nem Esperava Você Ligar; Queria Que Me Esquecesse Para Eu Esquecê-la Também

Seis e meia; no radinho: “Nosso amor não deu certo, gargalhadas e lágrimas...”. Quinze para as sete. Sete. Escurece. O telefone toca. Tento manter o controle da voz, mas com você do outro lado; impossível. Rádio: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”. Desbaratino; com você o oco sempre vem junto. O oco. Fico sem querer falar. Chato, falo pouco e curto. Silêncio. Oco... Pouca conversa. Para. Não enlouquecer. Beber.


Ela, O Frio. Saio

Sai pronta do quarto; vestido verde musgo: veludo. Bela ela... Esfria, visto a jaqueta e a touca, e saio pouco depois d’ela sair.


Ele, Marbel e a Adição

Corro, tenho pressa. Encontro com ele, justo ele. Despeço logo. Com promessa de nos reencontrarmos em breve... Boa pessoa ele, ele. Pena que não bebe, Marbel também não; não fuma, não bebe; nem carne come. E eu nessa. Penso em quanta porcaria já passou por minha boca nesta vida, mas continuo. Estômago e pulmão, e língua são como bombas dentro de mim; vivo prestes a detoná-las de vez. Qualquer dia acabo me fodendo nessa. É. A cabeça começa a rodar. E eu continuo... talvez algum dia eu pare, será bom se eu parar, vou ser igual a ele e Marbel.


Pensamentos e a Rua

Bem ao certo, não sei quanto tempo passou desde que saí. Saí e meu dinheiro ainda não acabou, que bom: gramas, ml’s, recortes... Sei que o movimento do passeio nunca me enjoou tanto quanto hoje. Sempre suportei bem, e hoje, ando perdendo o equilíbrio... Sei que preciso tomar um barco antes que seja tarde demais. Não encontro nenhum barco. Nenhum. Penso; penso, penso. Sem concluir.


Um Haikai

Sexy pra cacete

Até seu espirro...

Falta-me o verbete


Acho que eu deveria parar e voltar para casa, mas não quero. Escrevi este haikai num dia em que saímos e você estava gripada... parar é para quem pode, não para quem quer.


À Rua, De Novo

À cada momento o equilíbrio se torna mais precário. Merda de rua frouxa. Por detrás dos edifícios, transatlânticos. Os peixinhos japoneses aparecem eufóricos embaixo dos meus pés. Beliscam enquanto paro. Me seguem enquanto ando. As ondas começam a crescer, tropeço; o mergulho é inevitável. Que gostoso!.... Vou até ao fundo e não tenho vontade de voltar. O bom é ver as pessoas de baixo. Tão, tão feias. “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu...”. Percebo que pessoas que eu não vejo há anos estão todas lá, se divertindo. É, que bom! À tona, falta fôlego. As ondas diminuíram, me alegro. Passo em frente à padaria. Compro um pão. Do lado do meu prédio. Preciso sair; é tudo que sei. De novo só sei de uma coisa. Saber uma coisa só por vez é bom. Sem dúvida nenhuma. Vou.


Encontro Com Kafka!!!

Eu com o pão... sem mais fome; Kafka vem cambaleante: só pode estar bêbado. Kafka vem cambaleante, e, com ele, rárrá, Gregório e O Artista da Fome; um bom final para o meu pão. Kafka, como sempre: simpático, agradece. Só pode estar bêbado. Sempre encontro com ele nestas situações.


Bar É Bom, Mas Prefiro Andar

Bar é bom, mas prefiro andar. É de soslaio que as pessoas me olham, a vontade é de mergulhar de novo. Enquanto as horas passam, vou enfiando porcarias boca adentro. Lembro do seu beijo e o pinto arranca um meu pentelho. Merda! Sei que preciso parar, uma hora pararei mesmo... Mas não paro. Não paro. Sigo e já não encontro com ninguém; nem com ele! Ai se eu encontrasse Marbel. Você, à esta hora, já deve estar bebendo com outro; melhor mesmo eu não entrar em nenhum bar. Menos arriscado. O que tenho ainda nos bolsos, e a padaria, creio me serem suficientes... e a rua do Índio é logo ali, lá consigo mais o que precisar. “Tinha receio do frio, medo de assombração. Um corpo que não mostrava, feito de adivinhações. Os botões sempre fechados...”. Que mistério teria você, pra me deixar nestas condições?


Chuva

Que beleza; chuva!!! Assim esperto um pouco... Talvez um bar; um bar, um bar... Talvez não. Que porra!!! É essa possibilidade de, merda!!! ver você em algum lugar. À padaria... Merda de padaria fechada... fechada de quatro às seis, para a limpeza. Droga de padaria esquisita! Nervoso, sozinho e chovendo... pensar que um bar agora é minha última solução. Marquise para pensar, e um Mirabel que comprei na padaria mais cedo. Doce é bom.


Ao Bar

Mais calmo... vou ao bar, o melhor é ir. Quero mais. Não quero parar. Esperar um pouco até a chuva diminuir... e a chuva aumenta. E o tempo passa. Passa o bastante para a padaria abrir às minhas costas; o dia amanhece, e eu. Quero. Mais. Seis da manhã.


Por Quê?!

Quando bebo é para completar sua ausência em mim, filha da puta!... Bebê-la seria o ideal. Por quê?! Na padaria: “... tua presença, entra pelos sete buracos da minha cabeça...”. Sempre toca música boa nesta padaria... Seis e pouco da manhã; sinto vergonha, e um pouco de sono. Mas não paro. Volto à rua. Recomeço.


Trinta Agulhas Que Foram Muito Barato

“Trinta agulhas é um real! Trinta agulhas é um real! Trinta Agulhas é um real!”; compro trinta agulhas por estar muito, muito barato; chego a ter pena do rapaz que me vendeu. Trinta agulhas!


Continuo

Continuo.


Final

Seis e meia, sete, sete e meia. Tiro a touca. Oito, nove. O estômago queima tanto quanto o sol e o sol queima muito. Muito, muito sono. As coisas vão se tornando acumulativas. As pernas desobedecem, muito pelo cansaço. Preciso. Voltar. Não, quero. Mas... Em casa, o telefone fora do gancho; a mulher da janela em frente com as cortinas fechadas, o copo do liquidificador com o resto da vitamina já escura. Você um dia reclamou do barulho que o despertador fazia; um simples tic-tac bastou para você reclamar. Sei que logo não a quererei mais, aí talvez você compreenderá... É o mesmo despertador que agora eu regulo para despertar às seis horas da tarde... é o mesmo que coloco para despertar às seis horas da tarde. Às seis horas da tarde. Às seis da tarde. Me parece uma boa hora para acordar.

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