3-O lugar

SOBRE O LUGAR, ELE, COMPARAÇÕES, APOSENTADORIA, O BURACO, UMA CARTA, EDIFICAÇÕES, UM MONTE, LAGARTIXAS ENTRANDO PELAS NARINAS, PARAFUSOS, PORCAS E O FIM

O lugar, na forma, um pau de bodoque; uma passagem dando em duas, entre duas avenidas... e as pessoas ali, a maioria torta ou mal formada: cotidianamente... O beco em Y. Barracos altos, uns por cima dos outros, e uma trilha de céu acima. O bar no vértice. O beco... Cachorro, cachorro, muito cachorro. Ratos, famílias. Cachaça, aneurisma, cafeína, calafrio. Cirrose. Muito riso... Muito arame farpado de varal, muito caco de vidro de ponta pra cima... portas abertas, gente nos marcos. Fraldas nos arames farpados.

Mas não existem comparações entre vidas.

O beco; a fé, a cachaça, o amor: que não consegue ser correspondido, não consegue ser correspondido, não consegue ser correspondido... o esgoto a céu aberto... era assim.

O beco.

Os horários, lá... repetiam-se: os que vêm do trabalho, os que se encontram no vértice, os dias de culto... a igreja. As madrugadas que ninguém vê com os bêbados dormindo no chão; o frio, as quinas. Pouco se sabe. Destes lugares pouco se pensa sobre. Lugar dos que rejeitam raciocínios a respeito. O beco, parece um lugar que não quer existir. Existe pouco.

Na terra: muita guimba de cigarro. A tosse das crianças, sem parar. E porrada com sangue.

O céu: para lá, poucos dali olham.

E o beco.

A igreja que grita de 7 às 10 e meia. Tutaméia. A cachaça vai para os estômagos a todos os momentos. Ai, ai, ai. Noite à noite naquele bar os demônios rodopiam; enquanto na igreja os anjos descem. Os demônios rodopiam enquanto na igreja descem os anjos... Os demônios rodopiam enquanto descem os anjos. O beco em transe.

Ele: não agüentava mais aquela aposentadoria, não queria nem poderia trabalhar, aquilo era muito estranho... e aquilo era tão estranho que não houve coragem para contar para ninguém. Por muito tempo não se importou. Só quando vazou foi que incomodou: o frio. O frio. E nas tardes quentes o quanto queimava. O espaço no lugar do peito.

Mas não existem comparações entre vidas...

- Aposentado por insuficiência respiratória. Sempre fumou muito.


Um buracão, ali, que já estava quase no gogó; ao primeiro terço do intestino. Para os outros só usava lãs rulê grossas. Lá ninguém havia ainda percebido. Menos nove quilos já calculados, e o vento gelado da brecha do basculante enquanto tomava banho, atravessando... Pensa o quê debaixo do sol, Abaporu?!! Era a pergunta.

Sem você o meu mundo ficaria completo.

Nas tardes quentes, gostava de ir ao alheio. 30 a 40 minutos de ônibus, mais um tempo a pé. Origem-Destino. Um monte isolado a que chamava alheio... tirava sua blusa para sentir a brisa refrescar aquele grande orifício tão redondinho, aquele espaço que quase nunca tomava sol; e o vento. O vento. O vento... Guimarães!!! Alheio.

O buraco.

Algo que preenchesse aquele espaço. Mas prótese de peito?!




O lugar.

A paisagem, Miró; as edificações: Kandinski e as personagens Picasso. O enredo...

(É normal, as pessoas fragmentam-se, geralmente em 42 pedaços. Misturam-se por magnetismo e assim lhe chegam; com dedos na testa, orelha no peito, nariz no queixo. E assim por diante. As edificações seguem o espaço, o respeitam. E o enredo...)

- “Há um leão lá fora, serei morto por ele”.

O beco. Entrada de porta de casa que dá na altura do peito. Entrada de porta em que se abaixa para entrar. Não tem o dinheiro para o condicionador. Cesta-básica. O sol só desce todo ao meio dia. E o esgoto a céu aberto... ai. Mulherada quase nua. Muito sexo pela tarde. O esgoto a céu aberto. Briga com faca de casal num cômodo único com fogão e cama? ...e o esgoto a céu aberto. E tudo é muito grande. O beco é fino. A música é alta. O beco em Y.

- Pensa o quê, Abaporu, debaixo do sol?!


O buraco.

Ele, de fumar qualquer coisa já havia parado, já não dava mais barato nenhum. Desde aquilo tinha perdido a vontade também para coisas grandes, até de conversar com os outros já havia perdido a graça. A aposentadoria lhe bastaria pelo resto da vida, sabia disso. Ambições, ...; e então? Já por volta dos quarenta e cinco e ainda nada, não seria agora. E o seu buraco. E o seu buraco. Mas havia a sensação de que alguma coisinha ainda faltava. O quê?! Pensava e pensava muito, não com paciência para uma coisa só por muito tempo. Ficava não querendo pensar.
– Porque não foi este buraco na cabeça!?


Mas não existem comparações entre vidas.

O buraco.

Uma carta que estava na mesa ao lado de fotos, livros e uma xícara. À frente de um dicionário:

“Engulo: pílula por pílula; enquanto você vai à Bahia.
(é a garganta que não está bem)
e o jazz no radinho. Não sei mesmo se
conseguirei dormir de novo como dormia na juventude.
Madrugada adentro.
No fim da vida vir parar no beco.
Aqui.
Queria fazer algo, desabafar, como chutar a boca daquele gato de novo. Saudade de virar as noites, como naquelas de seis às seis às seis.
Saudade da fábrica, do tempo em que o buraco era só latência.
Dormir na porta daquela sorveteria, não. Fez muito, muito frio.
Cafeína, calafrio. Obnubilo.
Talvez o nosso problema seja só sexual, mesmo. Aí eu vou desacreditar de muito mais coisa nesta vida, é.
Eu tomaria todo gim que já tomei, de novo; toda cachaça, de novo; todo conhaque; todo vinho, até aquela garrafa ruim lá de Ouro Preto. Eu tomaria toda cerveja que já tomei, de novo. E isto significa muito pra mim. Enfrentaria aquele cara da ambulância que não me quis deixar voltar, filho da puta... ir atrás de você no festival, não. Foi muito, muito duro. A ponto de chorar. Naquele dia trouxe para casa um dos melhores livros que já li: Distraídos Venceremos, Leminski; hoje está com a moça de quem você usou a escova de dentes e ficou grilada.
Pois é. Talvez algum dia você tenha chegado a entender, mesmo; talvez. Quem sabe?
Daqui a pouco vou tomar um banho e sair.”


É, houve alguém, mas ficou irrelevante. Agora era o beco, a aposentadoria e ainda o buraco.... o beco entre duas avenidas; já esteve entre suas duas pernas, ela que era bonita, mas até o buraco agora era outro...

...seguindo a narrativa; não usava mais nome, não precisava. Do beco ao alheio, do alheio ao beco. Sem conversa. Sempre saindo pelo corredor maior, do lado da avenida mais movimentada, quase nunca pegava o caminho da bifurcação. No ônibus a paranóia de quebrar, e a barriga com as pernas caírem para um lado e o pescoço com a cabeça e braços caírem para o outro. Na avenida brevidades com Coca para sentar lá e comer. Alheio, alheio, alheio. Na volta banana para a vitamina. O beco, o beco, o beco. E à noite na janela. Porque não deu este buraco na cabeça?!

Um sonho constante: as lagartixas pelo queixo, vindo. Duas! Uma entra e entope a narina esquerda, a outra a outra narina; e as perninhas arrastando e querendo entrar mais.

É assim a vida de uma pessoa. E vai se falar dela...

E, já que estamos no fim, mais um último dado sobre ele: passou a ter um olhar diferente para as arruelas e as porcas, principalmente às porcas. Tinha todas que via pela rua, guardava limpinhas e sequinhas. Até que achava um parafuso correspondente e passava-os para a estante da frente. Na parede um pôster dos Alpes suíços.

Uma estória.


No fim da vida ir parar no beco... que diferença do mar.

2 comentários:

Livia De Marco disse...

muito bom, Mariozinho

Henrique disse...

beijo livia de marco.