I - [De quadr(i)- + -ica.]

[De quadr(i)- + -ica.]
S. f. Geom.
1. Lugar geométrico dos pontos do espaço que obedecem a uma equação do segundo grau nas três coordenadas cartesianas; conicóide.
Aurélio – Século XXI

Introdução

O homem está protegido embaixo do chapéu, e atrás das lentes amarelas tudo fica mais bonito; alegre e desinibido, tudo fica melhor. Diferente de quando usa os cabelos e as luzes naturais, ele pode ver tudo como uma cerveja veria.

Um pedaço de uma vida. A estória, e...

- Queria ser feliz igual um japonês. Queria não ficar careca igual um japonês. Queria não engordar igual um japonês. Frases que tenho depois que comecei a ver filmes de kung fu. Comecei a assistir aos filmes de kung fu por causa dele:

Vinte anos, Wagner, mameluco, filho único, segundo grau completo em escola pública, música: rock americano; feio, trabalha em uma vídeo-locadora, assuntos sem graça, mãos sempre suadas, não é tímido, tem o cabelo gorduroso e ralo, gosta de filmes de kung fu, assiste televisão até às três e acorda às onze e meia mais ou menos, pega serviço uma, tem cravos por causa do cabelo gorduroso, tem vergonha disto, a testa também é gordurosa, boca gorda, sonha comprar um carro, moreno, tatuado com uma índia de olhos verdes, fimose, paga suas despesas, bebe cerveja aos sábados à tarde, domingo joga bola, se masturba e dorme cedo.

São as melhores informações que já consegui.

É Wagner, meu vizinho do lado, uma pessoa que me parece feliz. Mora com a janela meio de viés com a minha. Moro faz quatro meses aqui, há três o acompanho... Nossos horários são mais ou menos os mesmos, bebo e fumo enquanto o observo vendo todos os filmes de kung fu que traz pra casa. Em outros termos, Wagner é um paralelo para minha vida nos últimos tempos, uma historia que vem progredindo e que espero enquanto passa. Um exemplo: quando venho com alguém para casa, geralmente Joanna, me mantenho acordado até depois e vou ver Wagner deitado no travesseiro do chão, e o pôster do Bruce Lee na sua parede. Quando viajo e volto, vejo Wagner e continua a mesma coisa. No café após o almoço penso em como seria se eu fosse Wagner.

Joanna:

Joanna é a menina que tem vindo com mais freqüência em minha casa, nova, novinha, 19 anos, a gente sempre vem pra casa bêbados e ela não chega a perceber meu desconforto em relação à outra vida que não tenho, a vida que Wagner tem... melhor não dizer, sei que é difícil entender destas coisas, principalmente quando se tem 19 anos. Acontece de ela fingir enquanto escuta Piazzolla que gosta também, eu tenho certeza que finge, esta certeza chegou quando me mudei para cá e virei vizinho dele, no fundo sei que ela queria é estar ouvindo Oasis com ele, na minha profissão deveria reconhecer isto como paranóia, mas, puta que o pariu. Gosto de Piazzolla e tenho os discos, tenho medo de querer começar outra vez uma nova coleção, ando ultimamente com pouco dinheiro, meu aparelho de CD’s quebrou e complica achar Oasis[1] em long play, droga de vida... Joanna tem os seios (detesta a palavra seios, segundo ela é antigo, e a partir daí ‘seios’ para mim é como Piazzolla) miúdos e muito bonitinhos, bonitinhos que só eles. Tem pernas de tenista e um interfemínio que é uma beleza, lindo, e é o que há de mais lindo em uma mulher. Gosto muito de Joanna, e melhor não sei dizer.

Wagner.

Conheço Wagner da vídeo-locadora Happy Vídeo, tenho ido lá constantemente e gasto tempo, mais que necessário sempre, para escolher um filme. Sempre está na tevê um vídeo de kun fu ou caratê... porque será que Wagner não faz, então, academia; que coisa enervante.

Uma impressão que tenho é que Wagner nunca leu um só livro na vida, talvez O Pensamento Vivo de Bruce Lee, não sei. E eu que já li tantos, pra quê? para quê... para agora observar Wagner e ter inveja do sossego, do sossego, que eu sei! que ele sente! Wagner é realmente enervante.

Dizendo agora de mim, consegui odiar Monteiro Lobato.

Tenho licença para meu doutorado, minha tese se baseia nele, Monteiro Lobato. A academia tem admirado meu trabalho até demais – enquanto admiro Wagner. Bosta. Já penso, depois do fato, no meu ridículo, consegui chegar ao cerne: foi Monteiro Lobato só por ser bacaninha, coisa de infância misturada com idéias grandes, e sei que é este ‘alternativo’ que a academia congratula comigo, e que isso para Wagner não tem o menor valor, nem deve saber que existem teses. Meus problemas têm sido sérios e muitas outras questões apareceram, muitas questões. Wagner apareceu em minha vida e tenho desbaratinado, estou todo sem saber sobre as coisas a partir de então. Tenho deixado de ler o necessário para assistir Bruce Lee. Rá, rá.

Então.

Nasci, cresci num bairro pobre tendo contato na rua com a gente deste bairro, mas meus pais sempre se esforçaram para me dar ensino nas escolas mais para ricos e assim por diante nunca precisei trabalhar, o caminho foi estudar e levar a vida, conseqüentemente com pessoas ricas, à maneira delas, cheguei à vida acadêmica... Quando saí da rua começou meu marasmo. Meu pai não tinha um caminhão para me deixar, como meu vizinho; tinha os estudos, estudei. O raciocínio normal é que estas pessoas com quem tive contato na rua trabalham pra gente estudar; eu, com o passar do tempo, já penso diferente: a gente estuda para eles viverem. Na nossa vida a alegria é muito esquisita, é tão difícil e tão dura, sustenta tão pouco: “bom mesmo é ter um caminhão”. Joanna gosta de ouvir Chico comigo também, penso em comprar Red Hot Chilli Peppers, que eu sei que encontro em LP, para ela ouvir.

‘Meu grande erro foi nunca ter dito a Joanna que a amo, os anos foram passando e eu perdi a oportunidade. Cabeça fraca, muitas noites inteiras a muito álcool, os dias passaram. Eles passam e vão levando muita coisa junto com eles.’


Quinze para as quatro da tarde eu levantei, Joanna já estava na sala ouvindo os discos que ela diz que gosta. Ontem Joanna depois de bêbada me propôs sair pra dançar, e ela sabe que eu não sei dançar, ela sabe que eu só sei fazer coisas que não precisam de muito movimento... Tenho que dar mais atenção a Joanna.

- Joanna, que tal sairmos para um sorvete?

- Não, querido, acho que já vou.

Capítulo 1
E o cara vai ao supermercado comprar seu uísque, a marca que ele compra é média e o caixa até lambe os lábios quando abre a prateleira dos uísques, passa pela cabeça sua futura noite de sexta, queria muito uma garrafa daquelas, resolveu pegar uma escondido no final do expediente. As pessoas na fila têm que esperar com paciência, mas uma senhora que comprava aipo perde a calma e muda de fila. Um carro esbarra no dele no estacionamento, não chega a estragar, ele não vai ficar sabendo. As Reinações de Narizinho empoeirado permanecem ao lado do computador. Joanna em casa olha pro teto deitada na cama. Ele caminha de volta pra casa e o sol bate ainda para cortar os prédios ao meio, ele se lembra que veio de carro e volta para buscar. Encontra com um amigo de faculdade e a filha, tem nojo do rosto da menina sujo de Danoninho ressecado: pensa em Joanna. Liga para Joanna que diz que está muito cansada e prefere ficar esta noite em casa.

O cara abre o uísque e joga a tampa fora, a tampa vira um brinquedo pro gato de Joanna, ele vai beber no alpendre, do lado contrário a janela de Wagner. Pensa na vida e conclui: que abóbora; gosta da comparação. Pensa em Ângela e sente saudade, tinha vinte e nove anos, agora 32.

‘Minha terceira personagem para o quadro final de uma estória não muito longa, a quarta comigo, sobre ela pouco tenho a dizer a não ser do seu cachecol, combinávamos na bebida e no pó... saudade, tenho pouca, ela jamais me amaria nesta condição...’

O dia escurece, a noite cai. Parece uma música do Tom, mas ele põe na vitrola as músicas do Chaplin... Chaplin, Chaplin, Chapolin, Chaves, Chopin, Chapolin, Rasputim. Ele pensa que tudo é muito engraçado. Ele pensa que tudo é azul. Chaplin, Chapolin, Chaplin, Chapolin, Reinações de Narizin. Daniel Azulay. Barbapapa azul. Pega o telefone e ainda lembra o número de Ângela de cor. Joanna resolve falar com ele e acha o telefone ocupado – as coisas continuam engraçadas. Ângela atende ao telefone olhando para a televisão.

Capítulo 2
As coisas vão ficando bestas, aí vêm os vícios ou as religiões... ou então as pessoas decidem ir ficando bestas junto com as coisas. As que pensam um pouquinho para além não agüentam e tentam fuga, neste caso não tem isto que dizem: suportar. E vícios são importantes, até os que têm as religiões os têm, é o lado que automatiza a vida. Joanna ainda não passou por este segundo Édipo para sair por aí sabendo que é cega nas coisas, ela ainda acha que enxerga e que vai ter um grande amor possível, isto me dá aflição em Joanna... ela pensa que vai vencer batalhas. Ao contrário de Ângela; tem sua novela e cheira muito nos finais de semana, é muito ansiosa durante a semana, ela precisa cheirar e isso é importante – amei Ângela. Joanna quando bebe não sabe o que está fazendo, ela não sabe que beber é coisa séria.[2]

‘Todo grande Homem ou foi religioso ou viciado; ou não perceberam que ele não passava de uma besta.’


Eu tenho problema com bebidas e com os gatos, voltando a falar de mim; tenho compulsão por enfiar um naqueles buracos redondos em que se joga vidro para reciclar, nunca fiz. Quando era pequeno dei um chute na boca de um que voou uns oito metros e caiu abobado. O moço que passava me deu um tapa na orelha que doeu uma semana, não tive coragem de contar para minha mãe. Ela também não gosta de gatos, acho que é por causa disto que também não gosto; mas quem tem vontade de judiar sou eu. Não faço mais... “dorme, dorme minha culpa”. Colocar as culpas para adormecer, os pecados, tudo aquilo... (lembra-se de quando xingou todos seus amiguinhos de pobres e sujos quando um deles, lembra-se que este tinha paralisia infantil no braço direito, mijou nas suas costas quando estava sentado num barranquinho, lembra-se de quando fazia orações para poder se masturbar, lembra-se de quando mentia para seus pais que já morreram, lembra-se de quando não gostou de um presente de natal e chorou a manhã do 25 toda, lembra-se do aborto, e as coisas não estão mais engraçadas como no capítulo anterior, vão ficando bonitas e doces e ele se lembra do rosto de Joanna que faz quarenta minutos saiu com umas amigas para noite). Como vão as coisas Charles, oba, oba, oba Charles.


Capítulo 3
Tenho apenas nove laudas - puta que pariu, nove laudas! - da minha tese e venho recebendo para isso, vai grande parte em bebida, com Joanna ou só. E Wagner deu para desenhar a lápis HB os Dragon Balls. Lápis HB mordido. Meu laptop. Chego na locadora a tarde e ele está desenhando. Porque que eu ouço Miles se existe Lulu Santos?... Tenho acordado diariamente com ‘puta que pariu’ na cabeça, é a primeira frase que me vem quando acordo, diariamente. Antigamente punha Vivaldi e olhava o dia uns três minutos pela janela, tomava café, lia os jornais, estudava e escrevia por longas horas – só meus alunos até hoje leram o que escrevi nesta época, tiveram as provas, alguns professores disseram que leram e ‘gostaram muito’; acreditei, mas de três meses pra cá, duvido... Hoje em dia é isso, e só dá pra levantar depois de muito tempo olhando pro teto, aí vou pra janela contrária ao dia antes dele sair para trabalhar. Ainda é bom quando Joanna está em casa, ela acorda e vai ouvir música, fico intimidado a achar que eu estou no caminho certo... sinto saudade de antes, da quarta-série, das pipocas de arroz e de falar keds, e de jogar os keds velhos em fio de luz. Regressões, regressões... talvez tenha sido Narizinho... eu não era assim. Reinações de Narizinho... Narizinho, vou jogar keds no fio de luz.

Capítulo 4
Wagner, um ano mais velho que Joanna, meu mundo fechado em dois adolescentes, a total ocupação para meu dia. Meu mundo cercado entre duas pessoas - cada uma e eu um, metades da minha idade, as duas meu tempo de vida, metade-metade-metade-metade, o mesmo em mim. Joanna quer seguir a carreira acadêmica, como eu aos 18 anos, e Wagner. Metade, metade, metade, metade. Joanna folheando meus livros de calcinha e camisetinha de short doll, os pais dela nunca deram muita atenção para o pequeno tesouro que têm. Os pais de Wagner basicamente só assistem tevê, a mãe cozinha e o carro arriou na garagem, a treliça da cozinha fechou com gordura. Joanna cresceu no playground, o porteiro a sentava no colo. Creio que ninguém nunca beijou aquela boca gorda esbranquiçada de Wagner. Joanna de cabelos molhados e bunda de fora. Joanna com hálito de vodka. Joanna deitada por cima de mim é a melhor hora do meu dia. VHS’s na locadora, cheiro de pipoca de microondas. Wagner querendo ser Bruce Lee, ela Lacan... aquelas discussões de criança – e se puser os dois pra brigar!? ...acho que vira eu. Oba, oba, oba, Charles...

Capítulo 5
Sem mais... quero dizer... quase toda estória é uma história de amor.

Considerações finais
...quase toda estória é uma história de amor.

Anos se passaram e a aposentadoria chegou por invalidez junto com a compra de um apartamento no centro da cidade, no quarto andar. Não tem saído muito fora a não ser para ir ao supermercado, quando sai é de chapéu e lentes amarelas. Tem tomado Velho Barreiro e o passatempo predileto tem sido cuspir na cabeça das pessoas que passam, quase nunca acerta, mas se diverte muito com isso. Volta, pula na cama e ri bastante. Sobre Joanna, Wagner e Ângela não soube mais, mas antes disso enquadrou foto dos três juntos em uma festa que deu no seu antepenúltimo apartamento quando ainda era vizinho de Wagner. Chegou a ser grande amigo e confidente de Wagner, foi quando Joanna o deixou.

‘Meu grande erro foi ter dito a Joanna que a amo, os anos foram parando e eu perdi a oportunidade. Corpo fraco, muitas noites inteiras a muito álcool, os dias pararam. Eles param e vão deixando muita coisa junto com eles. ’
Beijos...








[1] Aos 53 completei toda a coleção, foi quando atirei Piazzolla pela janela
[2] Com este recorte já podemos caminhar para um fim, se sabe pouco mesmo sobre a vida das pessoas e o excesso pouco acrescenta

6 comentários:

Dri disse...

Meu preferido.

Anônimo disse...

não deu pra formatar da maneira que eu queria, não.

valeu,
beijo.

Anônimo disse...

Greets!

I just wanted to say hi :)

Anônimo disse...

Shalom

It is my first time here. I just wanted to say hi!

Henrique disse...

hi.

Dri disse...

Voltei pra reler! Beijos, querido.